Quem não sente o teto de vidro

que atire a primeira pedra!

Postado por Viviane Nogueira em 13 de setembro de 2021

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A vida de Lúcia*

Lúcia sempre foi brilhante com números. Quando aprendeu a somar, bem pequena, gostava de fazer o cálculo das compras do mercado. Fazia isso na sua cabeça, sem contar pra ninguém. Achava o máximo quando chegava no caixa e tinha acertado até os centavos! Sua família a presenteava com bonecas, mas ela gostava de xadrez.

Na adolescência, descobriu a Olimpíada Brasileira de Robótica e percebeu que gostava de pensar em estruturas. Entrou para Engenharia Civil. Logo no início do curso começou seu estágio dos sonhos. Não tinham outras mulheres lá. Lúcia adorava o trabalho, mas percebia que seu chefe não a ouvia.

Apesar do chefe, foi efetivada porque se destacou muito. Nessa época ela trabalhou e estudou como nunca. Se tornou engenheira mais ou menos na mesma época que se casou. Continuou trabalhando e se destacando nos projetos. Percebeu que seus outros dois colegas de estágio além de efetivados também estavam recebendo promoções.

Apesar dos lucros que vinha trazendo para empresa, ela continuava no mesmo cargo. Então começou a questionar suas habilidades. O que haveria de errado com ela? Demorou, mas foi promovida. Um dos seus colegas de estágio virou seu chefe.

Lúcia engravidou e se sentiu encantada com a maternidade! Mas no Brasil são apenas 4 meses de licença, e ela está tentando negociar os 6 meses de amamentação exclusiva. Não consegue. Tira a licença com férias, e retorna. Percebe que não consegue apoio nessa nova fase no seu trabalho.

Todos os seus superiores são homens, não há nenhuma política de apoio ao retorno da licença maternidade na empresa. Ela nota que aquele colega de estágio já está 3 níveis acima dela. Com o período de afastamento, ela perdeu os projetos que atuava para outro funcionário. Agora precisa aprender tudo sobre os novos projetos que foi inserida.

Lúcia segue muito boa com números, e naturalmente faz cálculos básicos: ela está demorando muito mais na ascensão da carreira do que seus colegas. Começa a sentir conflitos entre a vida pessoal e profissional. Também começa a considerar outra trajetória para si, porque está ficando verdadeiramente cansada de questionar suas habilidades e desse ambiente de trabalho hostil.

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*Personagem fictícia

Lúcia, nossa querida Lúcia, representa muitas de nós. Ela demonstra alguns sintomas da síndrome do impostor. Até alguns meses atrás eu achava que o termo correto era síndrome da impostorA. Dá pra acreditar? Acho que isso diz muito sobre o contexto em que tive contato com esse tema.

A síndrome do impostor é a condição em que uma pessoa falha em internalizar suas realizações de forma persistente e sente medo de ser exposta como uma fraude. É possível haver relação entre a síndrome do impostor com o momento da carreira também. Ao avaliar estudantes e profissionais em psicologia, os efeitos de gênero para a síndrome do impostor foram significativos entre os estudantes, mas não entre profissionais (Brauer & Proyer, 2017).

Tanto a experiência da Lúcia quanto das estudantes de psicologia pode ser explicada pelo mecanismo social chamado de Teto de vidro. Esse mecanismo dificulta a ascensão hierárquica de mulheres em seus ambientes de trabalho.

No Brasil, o mecanismo é descrito para as pessoas que estão na construção da carreira e não para os que já se encontram nos cargos de liderança (Coelho et al., 2006).

Já na Bélgica, um estudo com 320 mulheres em posições de líder aponta para a percepção de um teto de vidro em seus cargos atuais. Ou seja, nos cargos de liderança, o teto de vidro continua. O estudo justifica os efeitos do teto de vidro em conflitos de carreira-e-família e como consequência há intenção de parar vindo dessas líderes (Babic & Hansez, 2021).

O que Lúcia sente não vem da sua falta de habilidade. Também não vem de ausência de formação ou conhecimento. Mulheres no mundo todo, em todos os níveis hierárquicos sentem essa dificuldade em subir e se manter no topo da carreira. O ritmo de trabalho não respeita nosso ciclo menstrual. Também não respeita nossas fases de vida.

Apesar disso... Existem políticas públicas em alguns países para aumentar o número de mulheres na liderança. Existem algumas empresas preocupadas com suas políticas de maternidade e apoio à saúde mental da mulher. Existem iniciativas de mentoria para mulheres ascenderem em suas carreiras. O mecanismo social é real e dificulta nossa vida. Mesmo que o teto seja duro, acredito que unindo nossas forças vamos quebrar o vidro - muito em breve!

Viviane Nogueira
Biotecnologista e doutoranda

(Este texto expressa minha opinião pessoal,
sem vínculo com instituições que sou afiliada.)

Referências

  1. Babic, A., & Hansez, I. (2021). The Glass Ceiling for Women Managers: Antecedents and Consequences for Work-Family Interface and Well-Being at Work. Frontiers in Psychology, 12, 618250. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2021.618250
  2. Brauer, K., & Proyer, R. T. (2017). Are Impostors playful? Testing the association of adult playfulness with the Impostor Phenomenon. Personality and Individual Differences, 116, 57–62. https://doi.org/10.1016/j.paid.2017.04.029
  3. Coelho, D., DE NEGRI, J. A., & DE NEGRI, F. (2006). Ascensão profissional de homens e mulheres nas grandes empresas brasileiras. In Tecnologia, exportação e emprego. Instituto Econômico de Pesquisa Aplicada.