Vou aproveitar o finalzinho de Agosto como inspiração para começar essa conversa sobre um tema, ou melhor, alguns temas que me chamam a atenção, me comovem e me fazem ter certeza de que escolhi a área certa ao cursar engenharia elétrica. São eles: a vida, os direitos e a segurança de mulheres e, principalmente, como a tecnologia se relaciona com tudo isso.
Bem, então vamos começar a destrinchar os termos dessa equação.
O chamado Agosto Lilás é uma campanha de conscientização e enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher. A campanha surgiu em 2016 no estado do Mato Grosso do Sul visando promover o conhecimento sobre a Lei Maria da Penha, sensibilizar a sociedade a favor da segurança das mulheres e aumentar a divulgação dos serviços especializados para a mulher em situação de violência e dos mecanismos de denúncia existentes. A campanha se difundiu para outros estados e, em Julho deste ano, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto que institui o Agosto Lilás como o mês de proteção à mulher em todo o país.
A violência contra a mulher é um assunto urgente no Brasil há muito tempo. No ano de 2013 o país foi o 5° colocado no ranking mundial de homicídios de mulheres¹ e, ainda hoje, não é possível dizer que esta é uma questão superada, principalmente com o aumento dos casos de feminicídio desde a chegada da pandemia de Covid-19 no Brasil, em Março de 2020² . Se antes da pandemia os dados de violência contra a mulher no Brasil já eram alarmantes pelas altas taxas de estupro (um caso a cada 8 minutos) e de violência doméstica (um caso a cada 2 minutos)³ , com a quarentena imposta pelo Covid-19 estes dados se agravaram ainda mais.
A pandemia do Coronavírus desencadeou uma série de mudanças nos mais diversos aspectos de nossas vidas, uma delas foi a necessidade de medidas de distanciamento e de isolamento social. Tais medidas impuseram que as pessoas passassem mais tempo em seus domicílios, o que implica, para as mulheres em situação de vulnerabilidade à violência doméstica, que estas passassem mais tempo em convívio com seus agressores.
Infelizmente, o resultado não fugiu ao esperado: ao se comparar o ano pré-pandêmico de 2019 com o ano de 2020 houve um aumento nos casos de homicídio doloso contra mulheres e de feminicídio². Curiosamente, no mesmo período houve uma diminuição nos registros oficiais de queixas quanto à lesão corporal dolosa, ameaças e estupro. Mulheres em vulnerabilidade e sem poder sair de casa não conseguem denunciar a violência que sofrem. E é aí que a tecnologia entra (ou deveria entrar) na equação.
A relação entre as mulheres - em especial suas vidas, direitos e segurança - com a tecnologia não nos parece tão óbvia quanto deveria ser. Fazendo uma busca rápida no Google com os temos ‘mulheres’ e ‘tecnologia’ os primeiros links que aparecem sempre remetem à baixa adesão feminina nas áreas STEM e aos desafios que ainda hoje temos que enfrentar ao escolher ocupar esses espaços majoritariamente masculinos. Eu poderia passar horas trazendo exemplos e conversando sobre diversidade (ou a sua falta) nas tecnológicas mas, neste artigo, vou me ater a apenas dois exemplos que evidenciam as consequências negativas desta lacuna.
O primeiro exemplo é uma notícia intitulada ‘NASA cancela primeiro passeio espacial de duas mulheres por falta de trajes’⁴ onde é descrita a dificuldade de projetar os macacões espaciais femininos. Além da infame dúvida dos especialistas sobre se 100 absorventes seriam suficientes para a astronauta, Sally Ride, em sua primeira missão de 6 dias no espaço. Não, eu não estou brincando.
O outro exemplo, e que até virou um documentário disponível no Netflix chamado Coded Bias⁵, fala da dificuldade que a pesquisadora Joy Buolamwini, do MIT, teve ao trabalhar com tecnologias de Inteligência Artificial (IA) voltadas para o reconhecimento facial. No documentário, ela, uma mulher negra de pele retinta, narra como o algoritmo com o qual trabalhava não reconhecia o seu rosto, mas os de seus colegas, homens e mulheres de pele branca, sim.
Felizmente, tem muita mulher (e negros e negras, e LGBTs, e muita gente diversa) que quer fazer ciência e tecnologia, quer fazer diferente e quer fazer a diferença nesses espaços. Também trago boas notícias do que já está acontecendo e de como a tecnologia pode e deve ser usada como mecanismo de mudanças sociais. Desta vez vou me ater a um exemplo mais próximo da nossa realidade local e que termina de fechar o laço da introdução que fiz sobre o Agosto Lilás, a pandemia e a violência contra a mulher.
Em 2018 comecei a trabalhar num projeto de iniciação científica com o objetivo de desenvolver um dispositivo eletrônico vestível capaz de identificar situações de risco para a mulher que o utilizasse. Tal dispositivo conta com sensores capazes de colher dados sobre os sinais vitais da mulher, possíveis quedas ou movimentos bruscos sofridos por ela e a sua geolocalização. Estas informações são analisadas através de técnicas de IA que, ao detectar situações de perigo, enviam automaticamente uma mensagem de pedido de socorro para uma lista de contatos de emergência.
Projetos similares a esse no qual trabalho já são uma realidade em outros estados como em São Paulo e no Amapá. E hoje tenho a alegria de dizer que o RN também está caminhando nesse sentido e que eu pude contribuir um pouco através da minha pesquisa. No dia 25 de Agosto a Câmara Municipal de Natal aprovou o Projeto de Lei (PL 123/2018) do Aplicativo SOS Mulher, bem como as Emendas ao PL feitas pela Vereadora Brisa Bracchi (PT/RN), como parte de suas atividades políticas do Agosto Lilás, contendo propostas de inclusão de mais possibilidades tecnológicas com base no trabalho que venho desenvolvendo⁶.
Bem, depois de toooda essa conversa (perdoem o textão haha) acho que ficou mais fácil de ver como a tecnologia pode se conectar e influenciar a vida, os direitos e a segurança das mulheres. E, para concluir, a mensagem que eu gostaria de deixar é que sim, é desafiador nadar contra a maré e trabalhar na construção de tecnologias sociais voltadas para mulheres (ou outros grupos marginalizados e sub-representados nas áreas STEM), mas também é possível e extremamente recompensador. E é esse tipo de engenharia social e popular que eu defendo e que pretendo praticar. Espero contar com vocês nessa luta! :)
*STEM: do inglês, Ciência, Tecnologia, Engenharias e Matemática
Fernanda Cabral
@fernandanomundo
Graduanda em Engenharia Elétrica-UFRN
Divulgadora científica em @techminas_
(Este texto expressa minha opinião pessoal,
sem vínculo com instituições que sou afiliada.)
Crédito da Imagem: cocoparisienne por Pixabay
Referências