Mulheres negras na ciência:

vamos falar sobre isso?

Parte I

Postado por Flávia Maristela Santos Nascimento em 04 de outubro de 2021

Escrever um texto para este espaço me fez sentir uma mistura de sentimentos, que variou entre a lisonja do convite e o reconhecimento de uma oportunidade para tratar de algum tema relacionado a mulheres que atuam na STEM. Rapidamente, percebi que o convite era também uma oportunidade de provocar inquietações e de romper silêncios. Aqueles silêncios que estiveram presentes na minha trajetória profissional até aqui, e que estão presentes na trajetória de tantas outras mulheres que atuam em ciência e tecnologia. O silêncio provocado pelo preconceito, pelo tratamento desigual, mas principalmente o silêncio relacionado ao fato de estarmos num país, onde a maioria numérica da população é composta por negros e negras, que assim como eu, não conseguem se enxergar ou se ver representados em boa parte dos espaços.

Isso me faz lembrar de um episódio que aconteceu quando eu apresentei um trabalho científico num evento da área de Engenharia Sistemas Computacionais. Um ex-aluno negro e morador da periferia de Salvador, me escreveu o seguinte bilhete: “super orgulhoso por te ver apresentando. Você me faz pensar que eu também posso estar aí um dia.” Aquelas palavras me tocaram e me fizeram perceber que, naquele momento, apenas o fato de eu estar ali passava uma mensagem silenciosa sobre resistência e representatividade.

A primeira constatação a gente nunca esquece!

Fiz a graduação numa universidade pública, num curso que seria a “profissão do futuro”: Ciência da Computação. Na época, havia um mito, desconhecido por mim até então, que cursar Ciência da Computação era garantia de sucesso e riqueza. Desnecessário dizer que na prática, a teoria é outra.

Na minha turma éramos 70 calouros, sendo 11 mulheres e apenas 1 preta: eu. Foi a primeira vez em que a proporção desigual entre homens e mulheres me chamou atenção. Para além da desigualdade numérica entre homens e mulheres, a minha turma não tinha representatividade racial: havia ali dois pretos (sem considerar aspectos de autodeclaração): eu e um colega.

Era um contrassenso. Eu, que havia estudado bastante para prestar vestibular, aprendi nas aulas de geografia que Salvador era a capital com maior número de pretos do Brasil. E que segundo o censo do IBGE, as mulheres eram mais numerosas do que os homens. Se computação era a profissão do futuro, porque não havia ali mulheres e pretos? Essa pergunta era um incômodo constante, mas o assunto não era discutido.

“Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada, para a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa”

Cálice – Chico Buarque e Gilberto Gil

O fato de ter mais homens em computação era “normal”, afinal “Isso não é curso para mulher.” Perdi a conta de quantas vezes ouvi isso, e ninguém conseguia me explicar porque. Era como se eu estivesse vivendo numa realidade paralela. Na verdade, o que eu sentia era o incômodo provocado pela falta de representatividade, mas eu não sabia. Não sabia também, que ao lidar com aquelas questões de maneira velada, eu estava sendo silenciada e esse silêncio era uma imposição inquestionável, que impedia que a minha voz pudesse falar.

“Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado”

Cálice – Chico Buarque e Gilberto Gil

É preciso então quebrar o silêncio para que a nossa conversa saia do lugar do “papo de surdo e mudo”, onde alguns são silenciados (os mudos), enquanto outros negam a realidade e retêm apenas o que lhes é conveniente (os surdos). É preciso romper o silêncio que nos ensina que as meninas precisam vestir rosa, aceitar o que lhes é imposto, sem questionamentos, e que elas não podem ter uma profissão X ou Y porque aquilo não é para meninas. É preciso romper o silêncio, que não nos permite falar sobre o incômodo de meninas negras que não se enxergam representadas nos livros e que precisam adequar o seu fenótipo para caber num modelo pré-concebido.

Que tal dar voz ao silêncio?

( Continua .... )

Flávia Maristela Santos Nascimento
Doutora em Ciência da Computação
Professora no IFBA

(Este texto expressa minha opinião pessoal,
sem vínculo com instituições que sou afiliada.)

Crédito da Imagem: Markus Winkler por Pixabay